Natal em Dover
O Natal de 2020 já pertence ao passado. Foi diferente em cada continente, em cada País, em cada comunidade, em cada família e em cada um de nós. Foi diferente também por causa das circunstâncias em que ocorreu. Já muito foi escrito sobre o impacto que a pandemia provocou numa celebração que pela sua natureza é um festival de afetos e que este ano se transformou num gigantesco exercício de controlo e reinvenção. O que aconteceu em Dover foi mais um episódio sobre o qual vale a pena refletir.
Fruto de um risco de propagação de uma nova estirpe viral mais contagiosa,identificada com forte incidência no Reino Unido e também do nervosismo provocado pelas últimas tentativas de negociação de um acordo para a saída regulada dos britânicos da União Europeia, milhares de camionistas de toda a Europa viram-se forçados a passar o Natal nas zonas de acesso ao Canal da Mancha e às infraestruturas que garantem a circulação de bens e mercadorias entre as ilhas e o continente europeu, em particular ao Porto de Dover.
Podemos olhar para o que vimos em Dover, como um momentâneo regresso ao passado, como se fosse um postal ilustrado dos tempos da Europa amarrada e barricada nas fronteiras de cada País e em que a autorização de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais tinha que ser conquistada administrativa ou politicamente em cada momento ou em cada operação.
Também o podemos olhar como uma antecipação que ilustra o que poderá ser o pandemónio do regresso ao protecionismo, ao fechamento, agora parcialmente evitado no acordo provisório sobre as regras pós-Brexit, mas que os nacionalistas populistas anunciam como solução para todos os males do mundo, sem pudor nem respeito pela realidade que os teima em desautorizar e desmentir.
Se há lição a retirar deste ano trágico de 2020 é que as forças da natureza não respeitam fronteiras. O que se afunda junto só junto se pode reerguer. Não são iguais todos os abrigos e muito menos os caminhos do retorno e o egoísmo individual e coletivo está entranhado na nossa natureza. No entanto, esse egoísmo de nada servirá a quem dele abusar, tentando salvar-se sozinho e deixando para trás os que não têm os mesmos recursos para recuperar.
Nas filas alinhadas na dormência provocada pelo fecho das fronteiras haviam motoristas e camiões de muitas origens, marcas, nacionalidades, tonelagens, tecnologias, idades e matriculas. Quando voltaram a circular foram muitos os Natais de esperançaque renasceram em Dover.